Enxugando gelo político

A corrida eleitoral presidencial vai tomando alguma forma, ainda que pairem muitas nuvens e incertezas de prognósticos nos cenários previstos, estudados e colocados a testes em pesquisas de intenção de voto. Articulistas e personalidades exaram suas opiniões na mídia impressa e podemos tirar algumas conclusões dessa ponta de iceberg democrático, ainda que o gelo derreta e se remodele rapidamente.

A morte física ou política traz benefícios para os herdeiros. Marina Silva somente teve um protagonismo nas eleições de 2014, vendendo seu apoio ao ilibado Aécio Neves no segundo turno, porque Eduardo Campos morrera. Esse é o medo por trás da análise de Leandro Colon, quando questiona se “políticos anti-Lula blefam ou de fato querem enfrentá-lo nas urnas?” (Folha de S. Paulo, 22/1). Não é à toa que outros possíveis candidatos petistas passam a ser alvo de investigações inusitadas. Vivemos quase uma distopia política: de um lado, a esquerda não consegue produzir um nome viável além de Lula; de outro, os conservadores patinam entre a cruz e a espada, ou seja, entre um candidato “santinho” e outro caricatura de militar.

A avaliação de Hélio Schwartsman é clara, ainda que tendenciosa, também ao se perguntar se “Lula foi condenado sem provas?” (23/1). Apresentar provas e provar algo são questões distintas que o articulista toma como idênticas. Mas foi apropriada a comparação com o árbitro de futebol, uma vez que, nesse esporte, a principal causa de dúvidas é o impedimento, que depende – literalmente – de dois pontos de vista: de onde partiu a bola e onde estava o jogador que a recebeu. A base da decisão colegiada vai por aí, superando o julgamento monocrático, caso fosse totalmente isenta, o que não parece ser, haja vista a declaração antecipada do presidente do órgão julgador e as manifestações de juízes e assessores nas redes sociais. Há algo de muito errado quando o julgamento se dá entre um juiz e um réu, não entre provas e crimes ou entre um eventual criminoso e a sociedade, como deveria ser o comportamento de um órgão que fala em nome do povo. A exposição midiática de desembargadores com discurso político não é saudável para a Justiça, ferindo de morte o conceito basilar de que o juiz fala nos autos apenas. Mas não é o Brasil que queremos e, sim, o que temos. Façamos o melhor, enquanto permitirem.

O resultado do julgamento de Lula em segunda instância foi o do mercado, esperando um 3×0 para apaziguar a bolsa de valores e as gentes de bens. Agora, é só enfiar goela abaixo do povo a reforma da Previdência e a liquidação da patrimônio público, com Supremo, com tudo. E a Pátria continua sendo subtraída em tenebrosas transações, como diz a música.

Foi precisa – além de necessária, permitindo o trocadilho – a análise de André Singer ao afirmar que “Lula inelegível coloca a democracia em estado de suspensão” (27/1). Ao fazer uma avaliação histórica, mostra o quão político foi o julgamento de Lula, com consequências além do combate ao crime e suposta moralização. Nesse sentido, é surpreendente como uma entrevista com a presidente nacional do PT pode ficar batendo apenas na mesma tecla da hipótese de Lula ser candidato mesmo preso. Gleisi Hoffmann deixa claro que isso não é discutido e perde-se a oportunidade de saber quais são as estratégias do partido para os arranjos estaduais e composição de base parlamentar no Congresso Nacional, haja vista a situação atual. Faltou ali um pouco do jornalismo de qualidade, para ir além das perguntas preparadas. É também o jornalismo que deverá criar e praticar os instrumentos para coibir as fake news, outro ingrediente imponderável nas eleições deste ano, lembrando que boa parte dessas anti-notícias tem origem nos próprios veículos de informação. A ciência tem introduzido as boas práticas de conduta e muitos artigos têm sido retirados, despublicados, em função de fraudes. Causa mal-estar e alvoroço, mas é melhor cortar na própria carne do que ter suas vísceras abertas por terceiros.

Assim, mesmo com todo o estardalhaço envolvendo candidatos e moralizações tendenciosas, parece que nossas feridas sociais continuam abertas e somente a gélida lambida do voto não será suficiente para aplacar a infecção.

Adilson Roberto Gonçalves, pesquisador no IPBEN – Unesp de Rio Claro, membro da Academia Campineira de Letras e Artes